PLP 12/24, cobertura social e transparência algorítmica

  • Em 22 de abril de 2024

Para o Portal JOTA

 

Uma reflexão sobre o trabalhador MEI

O embate jurídico que se coloca entre o que prevê o PLP 12/2024, as demandas dos motoristas, a natureza do negócio prestado pelos aplicativos e as decisões automatizadas ressalta a complexidade do cenário jurídico e tecnológico que permeia as relações de trabalho intermediadas por empresas operadoras de aplicativos.

O PLP 12/2024, proposto pelo Poder Executivo, visa regular a relação de trabalho dos motoristas de aplicativos, estabelecendo direitos e obrigações para ambas as partes. Porém, é crucial considerar como essa legislação se relaciona com as questões levantadas pelos “plataformizados”, especialmente com relação à precificação das corridas e às decisões automatizadas, tudo isso no contexto de uma sociedade que pretende proteger os dados pessoais e as decisões baseadas neles.

Um ponto de conflito evidente entre o PLP e as decisões automatizadas é a questão da transparência de fato em relação às decisões tomadas de forma automatizada pelos algoritmos das plataformas. As empresas de tecnologia que as operam utilizam uma forma de inteligência artificial para tomar decisões sobre precificação, alocação de trabalho e até mesmo avaliação de desempenho dos trabalhadores.
Por exemplo, os algoritmos podem determinar o preço de uma corrida de aplicativo e o valor do percentual que fica com a plataforma de forma dinâmica, isto com base em uma série de variáveis, como a demanda atual pelo serviço oferecido, a localização do usuário, disponibilidade de motoristas e o preço final da corrida. No entanto, a opacidade desses algoritmos levanta preocupações sobre a possibilidade de discriminação e injustiça na distribuição de trabalho e remuneração.

A LGPD, em vigor desde 2020, estabelece princípios claros para a proteção dos dados pessoais e a transparência nas decisões automatizadas é um dos seus pilares. O artigo 20 da LGPD, por exemplo, garante aos titulares de dados o direito de solicitar a revisão de decisões tomadas unicamente com base em tratamento automatizado de dados pessoais que afetem seus interesses. Além disso, o controlador dos dados tem o dever de fornecer informações claras e adequadas sobre os critérios e procedimentos utilizados para a decisão automatizada.

Esses princípios da LGPD podem entrar em conflito com as práticas das empresas operadoras de aplicativos, que muitas vezes mantêm em segredo os detalhes de seus algoritmos por razões comerciais. Isso levanta questões sobre a necessidade de maior transparência e prestação de contas por parte dessas empresas, especialmente quando se trata da tomada de decisões que afetam diretamente os direitos e interesses dos trabalhadores que delas se utilizam.

Um exemplo concreto desse embate entre legislação e práticas das empresas é o caso envolvendo a Uber julgado pelo Tribunal Superior do Trabalho (TST). O referido tribunal deu provimento ao recurso da Uber, anulando uma decisão que reconheceu o vínculo empregatício entre motoristas e a empresa. Essa decisão, embora tenha sido favorável à Uber, não encerrou o debate sobre a natureza da relação entre plataformas e trabalhadores. O procurador do trabalho Rodrigo de Lacerda Carelli, em artigos publicados, já expressou sua preocupação com essa decisão e fez reflexões sobre o impacto das práticas das empresas de tecnologia no direito do trabalho.

Outro exemplo relevante é o caso das decisões judiciais em outros países, como Espanha e Itália, que reconheceram a natureza trabalhista da relação entre aplicativos e prestadores de serviço. Esses casos evidenciam as dificuldades enfrentadas pelos sistemas jurídicos em lidar com as novas formas de trabalho intermediadas por plataformas de tecnologia.

Em recente audiência pública realizada no Congresso Nacional para tratar do PLP com os motoristas, diversos representantes desses trabalhadores disseram não se sentirem representados pelos sindicatos que se colocaram na linha de frente para debater a regulamentação; inclusive, em enquete realizada pela Câmara dos Deputados, a esmagadora maioria dos votantes disse discordar totalmente do texto do projeto, com mais de 60 mil votos.

Os principais pontos de divergência elencados na audiência pública foram: 1) o interesse dos motoristas de permanecer prestando serviço como MEI (Micro Empreendedor Individual); 2) a precificação das corridas com base no quilômetro rodado ao invés do tempo; e 3) a previsibilidade em relação ao percentual destinado à remuneração das plataformas por corrida.

Em relação ao primeiro item, uma das falácias que se tem hoje é no sentido de que o MEI não goza de proteção previdenciária e que apenas com o PLP os motoristas de aplicativo seriam reconhecidos como categoria e poderiam gozar dos benefícios previdenciários. Na verdade, os MEIs também desfrutam de direitos previdenciários ao formalizarem suas atividades, incluindo cobertura para aposentadoria, auxílio por incapacidade temporária, salário-maternidade e pensão por morte.

Em outras palavras, os motoristas de aplicativos, enquanto formalizados como MEI, já são uma categoria profissional prevista no Cadastro Nacional de Atividades Empresariais (CNAE) sob o código 5229-0/99 (motorista independente), sendo que, se adimplentes com o plano simplificado (código 1163) ou com o tradicional da previdência social (código 1007), garantem a cobertura social para as hipóteses e valores previstos em cada um.

Quanto à precificação das corridas, é imperativa a participação dos motoristas na sua formatação, inclusive, ao meu ver, ela deveria ser apenas uma sugestão editável pelo usuário, como funciona a InDrive, por exemplo, que permite que o motorista estabeleça o preço da sua corrida.

Afinal, se a plataforma é contratada como insumo para dispersão de oferta e demanda de serviço, não deveria ela ter a autonomia unilateral de fixação do preço da corrida oferecida pelos seus contratantes. No máximo, poderia ser oferecida como um serviço adicional para ajudar por meio de inteligência algorítmica na tomada de decisão do motorista, que, por sua vez, deveria poder estabelecer outros critérios pessoais para dar o seu valor pela experiência que proporciona aos seus passageiros (ex.: conforto do veículo, consumo de combustível e margem desejada).

Inclusive, tal qual está redigido o PLP hoje, isso poderia inviabilizar iniciativas como a da InDriver, visto que, ao estabelecer o piso por hora trabalhada, as eventuais negociações sindicais partiriam dessa premissa base, colocando em cheque qualquer iniciativa que busque maior autonomia aos motoristas, uma vez que as maiores forças do mercado acabariam norteando os preços praticáveis e sem a necessidade de compartilhar os critérios utilizados na programação de seus algoritmos.

Por fim, quanto à previsibilidade do percentual destinado à remuneração das plataformas por corrida, é fato que isso também é uma demanda urgente e necessária, considerando que o serviço prestado pelos aplicativos é sempre o mesmo e o custo por corrida gerada não deveria ter grandes oscilações para a plataforma, que presta um serviço de tecnologia. Assim, seja por um percentual justo e pré-estabelecido no contrato de forma clara, ou por meio da determinação de que o valor cobrado pelas plataformas seja fixo pelo uso do serviço tecnológico e desvinculado da receita gerada nas corridas, os motoristas devem, sim, lutar por esse ponto.

Independentemente da representação sindical, enquanto MEIs, esses trabalhadores podem se reunir, inclusive por meio da criação de associações de classe, para pleitear, enquanto consumidores do serviço prestado pelas plataformas, maior transparência nas decisões automatizadas e baseadas em dados. Conforme precedentes do Superior Tribunal de Justiça (STJ), entende-se que, mesmo considerando a característica de pessoa jurídica do microempreendedor individual, este será beneficiado com as proteções inerentes ao Código de Defesa do Consumidor em razão de sua vulnerabilidade frente às plataformas.

Em resumo, o embate entre o PLP 12/24 e as decisões automatizadas destaca a necessidade de um debate mais amplo e aberto sobre o futuro do trabalho em meio à revolução tecnológica. A transparência nos processos decisórios algorítmicos e a compreensão dos impactos sociais e econômicos das novas formas de prestação de serviço são essenciais para garantir um ambiente de trabalho digno e justo. Somente através de uma abordagem holística e colaborativa, principalmente com a participação dos interessados, poderemos encontrar soluções que beneficiem a todos os envolvidos.

 

Maurício Pallotta

Graduado em Direito pelo Mackenzie, Pós-Graduado em Direito Previdenciário pela UNISAL e Mestre em Direito do Trabalho e da Seguridade Social pela USP;
Advogado atuante nas áreas trabalhista e previdenciária empresarial;
Palestrante incompany;
Docente convidado em instituições privadas (ESA São Paulo, ESA Marília, ESA Nacional, Futurelaw, Mizuno Class e DVW Treinamentos);
Autor do livro “Contratação na Multidão e a Subordinação Algorítmica”, além de capítulos em livros de Direito do Trabalho e artigos para sites e revistas especializadas.

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