“Coroa-Vírus” – O Fato do Príncipe, a OMS e os Governantes

  • Em 8 de maio de 2020

O Coronavírus e a pandemia da Covid-19, dentre tantas outras questões jurídicas sobre as quais se levantou a discussão, parece que também tem a capacidade de fazer ressuscitar dispositivos legais que, face a ausência de causas históricas que permitissem a sua aplicação ao longo do tempo, já eram tratados como verdadeiras letras mortas na lei. É o caso do artigo 486 da CLT.

Art. 486 – No caso de paralisação temporária ou definitiva do trabalho, motivada por ato de autoridade municipal, estadual ou federal, ou pela promulgação de lei ou resolução que impossibilite a continuação da atividade, prevalecerá o pagamento da indenização, que ficará a cargo do governo responsável.

§ 1º – Sempre que o empregador invocar em sua defesa o preceito do presente artigo, o tribunal do trabalho competente notificará a pessoa de direito público apontada como responsável pela paralisação do trabalho, para que, no prazo de 30 (trinta) dias, alegue o que entender devido, passando a figurar no processo como chamada à autoria.

§ 2º – Sempre que a parte interessada, firmada em documento hábil, invocar defesa baseada na disposição deste artigo e indicar qual o juiz competente, será ouvida a parte contrária, para, dentro de 3 (três) dias, falar sobre essa alegação.

§ 3º – Verificada qual a autoridade responsável, a Junta de Conciliação ou Juiz dar-se-á por incompetente, remetendo os autos ao Juiz Privativo da Fazenda, perante o qual correrá o feito nos termos previstos no processo comum.

Todos esses dispositivos têm redação datada entre dezembro de 1943 e dezembro de 1951, sendo que as suas aplicações tem sido objeto de muito pouco estudo empírico, já que não houveram desde então grandes possibilidades para a sua invocação.

Antes de fazer qualquer referência a aplicação desse instituto no âmbito trabalhista, é preciso em primeiro momento entender o seu significado e quais os requisitos de viabilidade para a invocação jurídica do fato do príncipe.

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Em que pese essa discussão parecer novidade no âmbito trabalhista, o fato do príncipe é comumente utilizado no Direito Administrativo. Isso ocorre com certa frequência ao tratar dos contratos administrativos e da possibilidade jurídica de sua alteração por parte da administração pública, independentemente de previsão nos contratos.

No âmbito do direito administrativo, o fato do príncipe pode ser definido como o ato do administrador que, mesmo realizado de forma legítima, causa impactos nos contratos já firmados pela Administração Pública.

Mesmo causando prejuízo aos particulares, o fato do príncipe é, portanto, um ato lícito e legítimo decorrente do exercício de outras competências do administrador público. Conforme definição de Celso Antônio Bandeira de Melo:

“(…)agravo econômico resultante de medida tomada sob titulação diversa da contratual, isto é, no exercício de outra competência, cujo desempenho vem a ter repercussão direta na economia contratual estabelecida na avença”

Nas lições de Maria Sylvia di Pietro:

“(…) poder de alteração unilateral e de medidas de ordem geral, não relacionadas diretamente com o contrato, mas que nele repercutem, provocando desequilíbrio econômico-financeiro em detrimento do contratado.” 

“O fato da Administração distingue-se do fato do príncipe, pois, enquanto o primeiro se relaciona diretamente com o contrato, o segundo é praticado pela autoridade, não como ‘parte’ no contrato, mas como autoridade pública que, como tal, acaba por praticar um ato que, reflexamente, repercute sobre o contrato”

Por sua vez, Maria Helena Diniz, sintetiza o fato do príncipe da seguinte forma:

“1. Direito administrativo. a) Qualquer medida ou ato da Administração Pública que repercuta no contrato administrativo, tornando mais onerosa a situação daquele que contratou com o Estado. Tal fato rompe o equilíbrio econômico-contratual, podendo gerar para o Poder Público o dever de indenizar; b) norma geral emanada de autoridade pública que incide no âmbito jurídico do co-contratante, causando-lhe dano integralmente ressarcível pelo Estado (Marienhoff); c) caso fortuito decorrente de ordem governamental (Othon Sidou). 2. Direito do trabalho. Ato governamental federal, estadual ou municipal que, imprevisivelmente, paralisa temporária ou definitivamente o trabalhocausando danos ao empregador, que, então, pode pleitear indenização do governo”.

Os professores Jouberto de Quadros e Francisco Ferreira tratam da possibilidade de invocação do fato do príncipe no âmbito trabalhista, inclusive com repercussões indenizatórias:

“o legislador trabalhista prevê a responsabilidade pelo pagamento de indenização pelo governo responsável, no caso de paralisação temporária ou definitiva do trabalho, motivada por ato de autoridade municipal, estadual ou federal, ou pela promulgação de lei ou resolução que impossibilite a continuação da atividade (art. 486, caput, CLT)”

Nas palavras de José César de Oliveira, existem alguns requisitos para configuração do fato do príncipe na seara trabalhista:

“1) imprevisibilidade do evento; 2) sua irresibilidade; 3) inexistência de concurso direto ou indireto do empregador no acontecimento; 4) necessidade de que o evento afete ou seja suscetível de afetar substancialmente a situação econômica-financeira da empresa (cf. CLT, art. 501 e parágrafos)”.

O professor Homero Batista, conforme falado no início desse artigo, também nos lembra de que não é fácil encontrar exemplos históricos da aplicação desse dispositivo na vida real, sendo que foi buscar em 1960 um exemplo, bem como trata da razoabilidade de sua aplicação no caso de concretização da hipótese e faz uma analogia com o instituto da sucessão de empregdores:

“(…) praticamente não existem exemplos cotidianos de sua ocorrência, sendo preciso recuar aos anos 1960 para se localizarem hipóteses de expropriação de empresas privadas ou de encampação, seguindo-se de seu fechamento ou a dispensa de empregados. Se isso realmente ocorrer, é razoável que o ex-empregador, quer dizer, o expropriado não tenha de arcar com as verbas rescisórias dos empregados pegos igualmente de surpresa com o ato da autoridade pública, sobre quem passam a recair as responsabilidades indenizatórias. Mal comparando, é como se o dispositivo previsse uma espécie de sucessão de empregadores, expressão que não pode ser utilizada aqui por faltar o requisito da atividade econômica exercida pelo Poder Público e o sentido de trespasse do estabelecimento ou aviamento”.

Feitas essas considerações iniciais, parece que agora temos um momento propício e que torna finalmente possível uma análise empírica da aplicação desse instituto frente às determinações dos governos estaduais e municipais para fechamento do comércio em razão da pandemia da Covid-19.

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Isso porque, em que pese ser verdade que a determinação sucedeu uma lei que decretou o estado de calamidade pública e trouxe a conceituação de isolamento e quarentena, não houve até o momento um consenso em torno do lockdown ou do isolamento horizontal como forma única de combate à pandemia, sendo que esse ato partiu de uma escolha política de cada ente federativo com base da decisão do STF.

Analisando a situação atual que envolve a pandemia da Covid-19, há quem defenda que a determinação de estados e municípios de fechamento de estabelecimentos públicos se trata, na verdade, do exercício lícito de uma competência assegurada ao ente público ante o reconhecimento do estado de calamidade pública para resguardar a saúde e a integridade física da população. Força maior que autoriza o sopesamento de princípio, prevalecendo o interesse público sobre o particular em razão da manutenção da dignidade da pessoa humana.

Entretanto, é importante ponderar que o próprio diretor executivo da Organização Mundial da Saúde (OMS) e especialista em saúde emergencial, recentemente, afirmou que a Suécia, que não fez lockdown, é  “modelo de combate [à covid-19]”.

A declaração acabou reacendendo os debates, já que as decisões dos governadores e prefeitos de fechamento de estabelecimentos comerciais por eles não considerados essenciais se deram e foram defendidas por juristas como hipótese de não aplicação do factum principis com base exatamente nas recomendações da referida organização de saúde e na “ciência” (em abstrato).

Essas recomendações, desencontradas muitas vezes das peculiaridades de cada região, ao longo do tempo foram sendo desmistificadas pela própria OMS, que acabou revendo o isolamento total e horizontal como única forma de combate ao coronavírus.

O diretor geral da OMS, Sr. Tedros Adhanom Ghebreyesus, chegou a defender publicamente em coletiva de imprensa que os países mais pobres deveriam ponderar as consequências de um lockdown, em suas palavras:

“Isso [isolamento] pode nos dar tempo. Mas cada país é diferente, alguns têm um sistema de auxílio social forte e outros, não. Se fecharmos ou restringirmos os deslocamentos, o que acontecerá com essas pessoas que têm que trabalhar todos os dias?”

“Eu venho de uma família pobre e sei o que significa ter que se preocupar com o pão diário.”

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Sem entrar no mérito da conceituação de lockdown, isolamento, distanciamento e quarentena, já que isso também vem sendo utilizado de forma bastante equivocada por meios de comunicação e políticos, o fato é que não podemos deixar de avaliar que: uma coisa é a calamidade pública declarada, a qual pode sim ser considerada uma força maior capaz de relativizar a interpretação das normas através do sopesamento de princípios, outra são as medidas adotadas em cada região para o enfrentamento da crise, que devem ser observadas e verificadas do ponto de vista da limitação que todo administrador público deve ter na proteção de seus administrados.

Não houve nenhum tipo de comando ou recomendação centralizada no sentido de determinação do fechamento de estabelecimentos partindo do Governo Federal e com o passo atrás da OMS na questão da defesa desse tipo de medida como única e eficaz para diminuir o ritmo de contágio da doença, em especial considerando a realidade local e econômica de cada país, os governos estaduais e municipais que tomaram medidas mais duras e restritivas terão de assumir responsabilidades, se for o caso.

Em recente entrevista dada pelo governador João Dória ao Jornal da Cultura, o mesmo acabou reconhecendo que foi um “erro” ou que “não faz sentido” a determinação de fechamento completo de pet shops, por exemplo. Em especial ele faz menção aos serviços de banho e tosa de animais.

Uma confissão documentada em cadeia nacional no sentido de que pode não ter havido um planejamento tão profundo na determinação de fechamento de estabelecimentos comerciais, pelo menos em relação aos pet shops?

Questões de ordem política de lado, o fato é que a Justiça do Trabalho terá de enfrentar o fato do príncipe na prática, o que promete muita discussão em razão das controvérsias acima apontadas, bem como em relação ao limite da indenização de que trata o caput do art. 486 da CLT. Cenas para os próximos capítulos!

 

Maurício Pallotta. Mestre em Direito do Trabalho e da Seguridade Social pela Universidade de São Paulo. Especialista em Direito Previdenciário pelo Centro Universitário Salesiano. Graduado em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Sócio fundador do Pallotta, Martins e Advogados e da STLaw.

 

Referências:

BARROS, Alice Monteiro de – coordenadora. Curso de Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 3ª edição, 19975.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella in Direito Administrativo. 32ª edição – Rio de Janeiro: Editora Forense, 2019.

DINIZ, Maria Helena. Dicionário jurídico universitário, v. 2. 3ª edição – São Paulo: Saraiva, 2017.

MELLO, Celso Antonio Bandeira de.  Grandes Temas de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros Editores, 2009.

NETO, Francisco Ferreira Jorge e Jouberto de Quadros Pessoa Cavalcante (Jus Navigandi, 2000)

SILVA, Homero Batista Mateus in CLT Comentada (livro eletrônico), pág. 232. 2ª Ed. – São Paulo, Thomson Reuters Brasil, 2018

https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-brasil/2020/04/30/oms-afirma-que-suecia-que-nao-fez-lockdown-e-modelo-a-ser-seguido.htm?cmpid=copiaecola. Acesso em 09/05/2020.

https://www.gazetadopovo.com.br/mundo/o-que-o-diretor-geral-da-oms-disse-sobre-o-lockdown-para-mais-pobres/. Acesso em 03/05/2020.

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